Seringueiros julgados por invadir a própria terra

Trabalhadores rurais do Acre denunciam fazendeiro e a polícia de tortura. ‘Perguntaram quais eram nossas últimas palavras’

Texto por Arison Jardim e fotos por Katie Mähler para Brigada Amazônia

No último dia 6 de agosto, dois jovens trabalhadores rurais acreanos pensavam em suas últimas palavras, enquanto eram torturados com seus próprios terçados por membros da Polícia Militar do Acre. O relato de Francivaldo Santos, 25 anos, e Maurir de Souza, 24 anos, foi divulgado no último mês pela Comissão Pastoral da Terra, após ambos serem conduzidos para a delegacia, acusados por roubo de castanha e invasão de terra por um empresário de Rio Branco.

“Estava trabalhando por uns três dias lá na outra colocação, chamada Estica, aí o senhor Mozá enviou quatro policiais, sem ter nenhum mandato judicial para retirar nós daquele local. Eles nos abordaram, me amarraram com minha própria blusa e levaram nós para a beirada da casa. Disseram que iam matar nós e perguntaram quais eram nossas últimas palavras de vida”, assim começa relato de Francivaldo.

Brigada Amazônia, da Mídia Ninja, visitou Francivaldo e sua comunidade São Bernardo, na região da Transacreana, em Rio Branco. Um mês após o ocorrido, o jovem ainda sente medo de algo pior acontecer, mas é firme na certeza de lutar pela paz e permanência sua e de seus amigos onde moram, na floresta, trabalhando a agricultura e o extrativismo.

“Teve uma hora que pegaram nossos terçados e bateram em nossas costas. Depois de uma meia hora, separaram nós e me levaram para debaixo dos pés de buriti, me mandaram ficar de joelhos, teve um que sacou a pistola e ficou apontando para mim, perguntando quais eram minhas últimas palavras. Nessa hora ele efetuou um disparo no chão, há um palmo do meu rosto”.

Francivaldo relembra cada segundo daquele dia, desde a primeira abordagem até a viagem de três horas até uma delegacia da cidade, onde estava o empresário, chamado de Mozá, aguardando para denunciar os trabalhadores.

Após isso, Francivaldo conta que os policiais os levaram para um carro descaracterizado, botaram as algemas e os levaram. para a delegacia. “Eles estavam com um uniforme da polícia, escrito Bope na frente e COI atrás”, explica o trabalhador. O delegado, que atendeu primeiro o empresário, havia dito, conforme afirma Francivaldo, que “esses meninos não eram para estar aqui, são muito é trabalhador, esse fazendeiro fica perseguindo todo mundo”. O Batalhão de Operações Especiais (Bope) é um braço da PM do Acre, responsável por atuar em situações críticas.

Dois processos judiciais foram iniciados, a partir desta ação. Francivaldo e Maurir fizeram um boletim de ocorrência, contra os abusos dos policiais, mas o processo segue parado. O único que está correndo é o em que os dois trabalhadores são acusados de roubo de castanha e invasão, pelo fazendeiro. Dia 2 de outubro, ocorre uma nova audiência e os trabalhadores seguem com medo de que a injustiça seja feita. A Mídia Ninja irá acompanhar o caso.

O conflito de terra

A história deste conflito de terra vem de longa data. Há quase 20 anos, a comunidade do Seringal São Bernardo pedia a criação de uma Reserva Extrativista para garantir a conservação da região, ao longo do Riozinho do Rola, e a dignidade das famílias que viviam no local.

“Aqui a gente vive da borracha e da castanha, é uma forma de ganhar dinheiro com a floresta sem destruir. Nós pedimos uma reserva extrativista para gente sobreviver do produto natural, da terra”, explica Antônio Pereira, conhecido como Sulino, presidente da associação da comunidade.

Porém, mesmo com estudos feitos apontando a viabilidade da Reserva, votação na comunidade pedindo sua criação e a recomendação do Ministério Público Federal (MPF), em 2012, nada foi feito pelo governo Federal. Com isso, o Seringal São Bernardo foi supostamente vendido para um fazendeiro, que dividiu o espaço em três lotes e começou a expulsar os moradores, pressionando e pagando indenizações pífias.

“Ele tirou morador aqui até com mil reais [de indenização], nós sabemos disso. Ele conseguiu tirar meia dúzia e ficou umas colocações vazias”, explica Antônio.

Este é o mesmo modo que grandes fazendeiros expulsaram famílias dos seringais nos anos de 1970 e 1980 em todo o Acre, início da destruição de grande parte das florestas do estado.

Os moradores explicam que a pressão para tirá-los da área é para que haja uma nova exploração de madeira com manejo, conforme ocorre em uma outra área vizinha. Eles alegam que já buscaram informações que comprovem a compra do local pelo fazendeiro, mas nunca encontraram. “O fazendeiro dividiu o seringal São Bernardo em três áreas. Fomos no cartório e nos foi passado que ele não tem nenhum documento desta área onde moramos, ele tem um acordo de compras e vendas, três vezes, e não pagou. O Incra e o cartório afirmaram que esta área é da União”, relata o extrativista.

Com isso, “o fazendeiro aproveita os funcionários dele, vai na casa dos moradores daqui, derruba e bota fogo. Já fizeram isso duas vezes. Depois vai na justiça e diz que somos invasores. É isso que estamos passando aqui, ele pode vir aqui e talvez até tirar nossa vida. Porque se esse homem não tem o documento dessa terra, a justiça sabe que nós moramos esses anos todos aqui, como ele tem o direito de fazer isso com nós?”

O desabafo e a angústia de Antônio são claros, o perigo é eminente. A lentidão do poder público pode levar a algo pior para os moradores, pois as ameaças saíram de verbal, casas queimadas para um tiro próximo à cabeça. Atualmente, o projeto de criação da Resex foi mudado, pelo governo federal, para a criação de um Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

“A gente vai no Incra e eles dizem que não tem dinheiro para a criação. Quem sofre com isso é a comunidade, não se resolve o conflito e o fazendeiro segue pressionando. Cada ano é mais uma coisa que ele apronta para nós”, diz.

A tortura sofrida pelos jovens trabalhadores é um medo com o qual os moradores do Seringal São Bernardo convivem diariamente. Anos de conflito ainda seguem sem solução e sem previsão de uma decisão a ser tomada.

“Nosso problema maior aqui é o conflito da terra. Com certeza, a criação do Projeto Agroextrativista vai melhorar para a gente, sabemos que vai ter uma garantia para o futuro de nossas gerações. Às vezes, em casa, olhando para as minhas filhas, fico pensando: ‘Meu Deus, se minhas filhas chegarem à minha idade, o que elas vão alcançar. Temos que lutar para preservar essa floresta, não só por nós, mas por todo ser humano”, finaliza Antônio.

NOTA: O governo do Estado informou a equipe do Mídia Ninja que, a respeito do caso de tortura, “a PM não recebeu ainda nenhuma relação da parte, como também não foi notificada pelo Ministério Público. Tomou ciência através da matéria e a partir daqui tomará as medidas cabíveis”.

Já sobre as denúncias feitas pelos moradores do Seringal São Bernardo, sobre possíveis crimes ambientais causados pelo Plano de Manejo Madeireiro no entorno, “o presidente do Imac André Hassen informou que homens estão no local fazendo fiscalização”. Porém não confirmou, nem negou, se ocorrem tais crimes.

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